A intolerância religiosa tem se aprofundado como uma das expressões mais violentas do racismo estrutural brasileiro. De acordo com dados atualizados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, os registros de violações à liberdade religiosa aumentaram 66,8% entre 2023 e 2024. Foram 2.472 denúncias recebidas pelo Disque 100 no último ano, frente a 1.481 no ano anterior — um crescimento alarmante que exige atenção urgente do poder público e da sociedade civil.
Entre as religiões mais atingidas, destacam-se novamente as de matriz africana. A umbanda lidera os registros com 151 denúncias, seguida pelo candomblé, com 117. Outras expressões do campo religioso afro-brasileiro somaram ainda 21 casos. A repetição desses números, ano após ano, revela não apenas a persistência da violência, mas também o silêncio institucional que ainda prevalece diante desses crimes de ódio.
Na Baixada Fluminense, onde a ComCausa atua há quase duas décadas no enfrentamento à violência e promoção dos direitos humanos, o cenário é particularmente crítico. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ), houve um aumento de mais de 50% nos registros de ataques a terreiros e agressões a adeptos das religiões afro-brasileiras entre 2022 e 2024. Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti e Belford Roxo concentram a maioria desses casos.
Muitos desses episódios de violência contra terreiros, praticantes de religiões de matriz africana e outras minorias religiosas sequer são registrados como intolerância. Nas delegacias, frequentemente são reduzidos a meros ‘conflitos interpessoais de fim de semana’, ‘briga entre vizinhos’ ou ‘feijoadas’ – termos usados por alguns agentes para minimizar a gravidade dos fatos. Essa rotulação simplista ignora o ódio religioso que motiva tais agressões, como invasões a espaços sagrados, destruição de objetos rituais ou ameaças com teor discriminatório. Ao transformar crimes de ódio em desentendimentos cotidianos, o Estado não só falha em proteger as vítimas, mas naturaliza a violência, reforçando a impunidade e a perpetuação dessas práticas.
A violência contra comunidades religiosas tradicionais é também simbólica: templos destruídos, objetos sagrados profanados, lideranças ameaçadas e crianças expostas ao medo. O que se ataca não é apenas uma religião, mas a própria existência de uma cultura, de uma identidade. Isso é racismo religioso. E precisa ser enfrentado como tal.
É preciso lembrar que o Brasil possui legislação que criminaliza a intolerância religiosa. A Lei nº 9.459/1997 prevê pena de um a três anos de reclusão, além de multa. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal reforçou o entendimento de que ataques a terreiros configuram crime de racismo — ou seja, são inafiançáveis e imprescritíveis. Mas, na prática, essas garantias legais têm sido ignoradas, especialmente nas periferias urbanas e em territórios de maior vulnerabilidade social.
Em resposta a esse cenário, as comunidades de terreiro vêm se fortalecendo por meio de redes de proteção mútua, formação política, campanhas públicas e ações em articulação com entidades da sociedade civil, como a própria ComCausa, além de iniciativas junto a universidades e órgãos de fiscalização.
Essas ações são mais do que simbólicas: são gestos concretos de resistência e memória. Cada árvore sagrada plantada é um compromisso com o futuro. Precisamos voltar às universidades, escolas e espaços públicos todos os anos, durante o Abril Verde, para lembrar que o sagrado também floresce da terra e da ancestralidade.
Se quisermos, de fato, enfrentar a intolerância religiosa, precisamos agir em três frentes: educação, justiça e políticas públicas estruturadas. Não basta apenas denunciar. É necessário formar agentes públicos, reconhecer as religiões de matriz africana como patrimônio cultural imaterial e garantir proteção às casas tradicionais. Enquanto isso não acontece de forma plena, seguiremos resistindo. Como já dissemos em outros momentos: atacar uma religião é atacar a dignidade humana. E isso exige uma resposta firme, articulada e urgente.
Para denunciar casos de intolerância religiosa, ligue para o Disque 100 ou procure a DECRADI – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, localizada na Rua do Lavradio, 155, Lapa – Rio de Janeiro. Telefone: (21) 2333-3509.
II Colóquio Siso Itan Ati Akoko
Será com esse espírito que estaremos, no dia 10 de abril de 2025, o II Colóquio Siso Itan Ati Akoko – Contando a História do Tempo, no Jardim Botânico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropédica. O evento será organizado pelo Grupo EtnoPET, em parceria com casas de axé, coletivos acadêmicos e com o apoio da ComCausa, e reunirá espiritualidade, ciência e resistência em um momento de profunda conexão com a ancestralidade e os direitos humanos.
Entre os destaques da programação, estará a mesa de debate sobre o combate ao racismo religioso e o emocionante cortejo pelo campus, que culminará no plantio de uma muda de Akoko — árvore sagrada nas tradições de matriz africana — ao lado do Iroko plantado há três anos. A cerimônia contará com a participação de importantes lideranças religiosas, como o Frei Tatá, da Pastoral Afro, além de representantes do poder público.
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