Memória: policial civil Eduardo de Oliveira

Memória policial civil Eduardo de Oliveira

Na noite de 19 de abril de 2012, uma data que se tornaria inesquecível para a família de Eduardo da Silva Oliveira, o destino se fez presente de maneira violenta e irreversível. Eduardo, um jovem policial civil com apenas 25 anos, recém-lotado na 65ª Delegacia de Polícia (Magé), saiu para cumprir seu dever profissional em uma operação na Rodovia Washington Luiz, situada em Saracuruna, Duque de Caxias. Aquela noite, marcada por incertezas e tensões, terminaria em tragédia.

A narrativa inicial, rapidamente divulgada, insistia em apontar uma troca de tiros com supostos assaltantes como o motivo do disparo fatal. Entretanto, já nas primeiras horas seguintes ao ocorrido, as evidências começaram a contradizer os relatos oficiais, revelando uma verdade muito mais complexa e dolorosa para todos os envolvidos.

A revelação das perícias

O Instituto de Criminalística Carlos Éboli, responsável por analisar os vestígios do caso, elaborou um laudo de necropsia cujas conclusões abalaram a narrativa oficial. De acordo com a perícia, o projétil que tirou a vida de Eduardo percorreu uma trajetória de cima para baixo e se alojou em sua traqueia, indicando claramente que não se tratava de um confronto direto entre policiais e criminosos. A investigação conduziu ao nome de um colega de Eduardo na mesma delegacia: o inspetor Lincoln Vinícius Bastos Vargas, apontado como autor do disparo. Inicialmente classificado como “auto de resistência”, o caso logo se transformou em homicídio após essas informações virem à tona. Ainda assim, surpreendentemente, o Ministério Público optou por denunciar Vargas por homicídio culposo, sob o argumento de “erro de execução”, em vez de homicídio doloso, que exigiria a comprovação de intenção de matar. A sentença final foi considerada leve, ou mesmo benevolente, pela família da vítima: três anos de prestação de serviços comunitários, pagamento mensal de cestas básicas, ressarcimento das custas do processo e a obrigação de participar de um curso de tiro.

A dor de uma mãe

Para a mãe de Eduardo, Rozemar Oliveira, a decisão judicial funcionou como uma nova forma de violência, talvez mais cruel por ser institucional. Em seu relato emocionado, ela insiste em lembrar que a vida do filho não pode ser resumida a um “erro”. “Não foi um erro. Foi uma vida”, ela repete a quem quiser ouvir. Essa frase ecoa como um grito de alerta, evidenciando que, até o presente momento, não se fez verdadeira justiça. Rozemar, que mal conseguia acreditar nas circunstâncias da morte de Eduardo, viu-se envolta em uma batalha desigual contra as estruturas do Estado, as quais pareciam mais interessadas em defender seus próprios agentes do que em assegurar a responsabilização efetiva pela perda de seu filho.

Apesar da imensa dor, Rozemar não permaneceu paralisada pelo luto. Desde os primeiros dias, decidiu acompanhar de perto cada detalhe do inquérito policial e das investigações subsequentes. Em 2012, seu empenho a levou a participar de manifestações simbólicas na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, um espaço público onde pôde denunciar a brutalidade sofrida e pedir atenção ao caso. Além disso, ela foi recebida em Brasília pela Comissão da Pessoa Humana da Secretaria de Direitos Humanos, então chefiada pela ministra Maria do Rosário. Nesse encontro, graças à mediação do governo federal, obteve acesso a imagens das câmeras de segurança da Rodovia Washington Luiz, material que a empresa administradora do trecho se recusava a fornecer. Nesse processo, uma equipe do Centro de Direitos Humanos ComCausa, vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, visitou a família de Eduardo e passou a acompanhar o desenrolar dos fatos, com apoio e solidariedade à busca por justiça.

Apoio na Assembleia Legislativa do Rio

Paralelamente a essas iniciativas, Rozemar encontrou suporte na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, presidida à época por Marcelo Freixo. Foi nesse ambiente que ela travou contato com Marielle Franco, então assessora parlamentar. Marielle, reconhecida por sua atuação em defesa de direitos e contra a violência institucional, tornou-se uma aliada importante, acompanhando audiências, atos públicos e manifestações que buscavam cobrar esclarecimentos. Em 2018, o brutal assassinato de Marielle foi mais um choque que abalou profundamente quem já enfrentava o peso do abandono estatal e a violência que brota, muitas vezes, de dentro das próprias instituições.

Inquérito sem Júri Popular
A despeito de todo o esforço, da comoção gerada e dos laudos técnicos que apontavam graves inconsistências na versão oficial, o processo não seguiu para júri popular. A única audiência designada para avaliar o caso foi cancelada, deixando a família de Eduardo num limbo legal, sem perspectivas claras de uma nova oportunidade de julgamento. Passados treze anos desde o ocorrido, o risco de prescrição da pena, que é inferior a quatro anos, cresce de modo significativo, alimentando o temor de que a punição jamais seja concretizada por completo, perpetuando assim o ciclo de impunidade que assola tantos casos similares.

O policial permanece na ativa

Paradoxalmente, o inspetor Vargas, que foi legalmente apontado como autor do disparo mortal, permaneceu em exercício na Polícia Civil. Documentos administrativos internos da corporação indicam que ele teve pedidos de benefícios aceitos e não há registros de processos disciplinares ativos que resultassem em sua exoneração. Uma decisão judicial chegou a indeferir o pedido de expulsão apresentado pelo Ministério Público, sob o argumento de que a morte de Eduardo “não justificava a perda do cargo”. Essa postura é encarada pela família como uma verdadeira afronta à memória de Eduardo e aos princípios básicos de justiça. “É como se a Justiça exigisse um número maior de mortos para, enfim, agir”, desabafa Rozemar.

Antecedentes graves

A indignação de Rozemar se intensifica ao relembrar que Vargas chegou a recorrer a Brasília para reverter as sanções, mas não obteve sucesso em sua tentativa. Todavia, mais alarmante ainda é o fato de o inspetor estar envolvido em outro episódio de violência: em 2011, ele havia baleado o adolescente Igor, então com 16 anos, que precisou carregar o projétil nas costas por várias semanas até ser submetido a uma cirurgia. A bala, posteriormente entregue ao Instituto Carlos Éboli, foi identificada como sendo disparada pela mesma arma que matou Eduardo. Esse histórico reforça a sensação de que a proteção institucional e a falta de responsabilização alimentam a repetição de casos trágicos, perpetuando a violência contra cidadãos — sejam eles civis ou membros das próprias forças de segurança.

A saudade da irmã e o quarto de Eduardo

Bruna Vieira, irmã de Eduardo, era apenas uma adolescente de 15 anos quando tudo aconteceu. Ela relata detalhes que, com o tempo, assumiram dimensões quase premonitórias: naquela semana, Eduardo antecipou sua folga de quinta para quarta-feira, algo que não costumava fazer, e saiu de casa usando colete à prova de balas, o que também não era seu hábito. “Ele não explicou o motivo. Mas, hoje, parece que ele pressentia algo”, diz Bruna.

Por muito tempo, Rose e Bruna mantece o quarto de Eduardo intacto, como se a família ainda aguardasse seu retorno do plantão, na esperança, mesmo que vã, de que nada daquilo tivesse acontecido de fato.

Um retrato da impunidade

O assassinato de Eduardo da Silva Oliveira tornou-se, para a organização ComCausa e para outros grupos de defesa dos direitos humanos, um símbolo doloroso das falhas nos mecanismos de responsabilização de agentes estatais no Brasil. Em inúmeros casos, imperam a falta de controle efetivo, a banalização das mortes que ocorrem em supostos confrontos e a proteção corporativa, resultando em um sistema que insiste em silenciar as famílias que lutam por respostas. A história de Eduardo deixa evidente como a impunidade é mantida por essas estruturas, que deveriam zelar pela vida, mas, em vez disso, muitas vezes agravam o sofrimento das vítimas.

Resiliência e luta contínua

Mesmo diante de tantos obstáculos, Rozemar permanece firme e inabalável em sua busca por justiça. Ela participa de vigílias, de audiências públicas e segue denunciando o caso sempre que tem oportunidade, para que a história de Eduardo não seja esquecida e não caia no limbo do descaso. Suas palavras refletem o sentimento de inúmeras mães que perderam filhos em situações semelhantes: “Não quero vingança. Quero justiça. Meu filho era policial. Morreu nas mãos do próprio Estado.” Dessa forma, a jornada de Rozemar transcende a história individual de sua família, tornando-se um grito coletivo por mudança, memória e verdade.

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